Tinha me deitado às três, acordado às cinco, passado por um longo processo seletivo durante toda a manhã, mente fatigada, músculos se queixando, frio, frio. Entrei no ônibus, e a pequena alegria corriqueira: meu lugar favorito estava vazio. Pra mim é sempre um sinal positivo do universo quando vejo ele lá, sozinho a me esperar. Me acomodei, mas hoje não havia em mim espírito para admirar os carros e destinos que voavam pela janela, não havia a fome de passos e olhos e cores de sempre; encostei a cabeça no vidro e deixei que as pálpebras repousassem. Em alguns segundos, senti um toque em meu cabelo. Um engano, um gesto feito ao acaso, pensei. Mas a mão permaneceu. Começou a alisar meus fios, descendo desde a raiz, contornando o espiral dos cachos ao final. Me virei: um sorriso bege e sincero, por detrás do buço grisalho, me aguardava. Desarmada, não pude nem hesitar, só me vi sorrindo de volta, daqueles sorrisos que começam no fígado e sobem, sobem, neurônios acima. Voltei à minha posição original, com o peito aquecido e sentindo cada curva do meu cabelo ser acariciada, agora ainda acompanhada por palavras sussurradas, por mim ininteligíveis. Uma oração, uma canção, não sei dizer. Aos olhos dos outros passageiros, aquela era uma cena bizarra: eu aceitava afagos de mãos desconhecidas, enrugadas, encardidas. E apreciava frases desconexas, possíveis delírios, feitiços, como a uma melodia. Preferiram enxergar macumba, loucura, insensatez. Eu e minha lente tortuosa, metida à prisma... vi veludo, calor, carinho. Eu vi amor. Amor aos meus cachinhos.