Foi dando passos arrastados pela cidade que esse pensamento me atravessou: acho que somos todos perdidos. A qualquer tempo atrás ela usava sandálias artesanais de couro e qualquer coisa que esvoaçava no corpo. Tecidos leves e estampados para um semblante leve e despreocupado. A pé ou de bicicleta, sempre as mãos dadas. Com um par que imitava seu cabelo, e os fazia mais que amantes - dois irmãos. Ela carregava mudas em uma caixa de papelão quando me ofereci para ajudar. As mochilas anunciavam o futuro acampamento; as mudas, as flores que ela faria nascer, de pés no chão. Qualquer tempo passou e eu vi o irmão com outra moça, que já não parecia uma irmã, mas uma peça de lego desencaixada que ele havia posto ao seu lado, por amor ou por prazer. O semblante estampado com tecidos despreocupados teve de dar licença, para aquela nova paisagem se pintar. E para que outro quadro ela teria ido, eu não saberia dizer. Até hoje. Até que reconheci aquele cabelo - o mesmo, ainda que agora sem par. Calça jeans, blusa social de tons escuros, um tênis de couro. Um piercing de boi no nariz. Ainda poderia ser ela, embora mais nada esvoaçasse, nem resplandecesse... não fossem aqueles olhos, com qualquer coisa de preto, por volta, por dentro. O que estava ali não era ela, mas sua reinvenção. Ainda que antes tivesse a certeza de que amava a leveza e os pés no chão. No novo quadro, não havia girassois. Então, esses somos nós. Todos perdidos, não na mesma medida, ou pelas mesmas esquinas... mas perdidos. Nos encontrando em agosto para nos perdermos em novembro. Natal numa oca, carnaval atrás do trio elétrico. Identificar reflexo, quebrar espelho. Achar no sofá, perder na mesa. Buscar, acertar, e errar, nunca tendo errado. Saber que não é, jurando ser. Querer ser, sabendo que não há. Ela é alta, magra, usa tons sóbrios, ouve bossa nova e toma vinho antes de transar. Ela tem roupas e guarda-roupas a perder de vista, e o que não encontra nas pessoas, procura em qualquer cabide. Ela só quer qualquer alguém, em quem possa repousar sua segurança e seu tesão. Ela tem sido, total e completamente; passa 24 horas sendo, sorrindo e fazendo. Ela olha vidas, amores e corpos que queria que fossem seus. Ela gosta de cores e de alegria, e tem qualquer coisa infantil. Tantas elas, em tantos lugares... tantas elas. E eu e umas perdidas. E outras, encontradas? Por quanto tempo? Até que dia? Até que vinho, que não, que adeus? Pelo tempo que for possível carregar o incrível peso de ser. Enquanto sempre, perdidas. Busquemos. Até que o destino se fatigue do desvio, dos fins, da contra-mão. E aí, então, sejamos - pela primeira, milésima e última vez -, sejamos.